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10/12/21 às 17h47 - Atualizado em 6/10/22 às 12h45

Opinião/”Acaso” confronta o real

Texto Lúcio Flávio. Edição: Sérgio Maggio (Ascom/Secec)

10.12.21

15:42:00

 

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O diálogo, insólito, beira à caricatura, mas aconteceu, outro dia, numa das calçadas mais tradicional de Brasília, a Avenida, W3-Sul. Eis que, do nada, um senhor de barriga generosa e barba hirsuta, dispara, sem medo de ser feliz: “Eu vou te contar um segredo! Eu sou Deus”, continua o velhinho, ar celestial, indignado com as providências divinas que tomou nos primórdios da existência.

 

“No principio, era quatro seres e eu não consegui tomar conta deles, hoje são bilhões, preciso de sua ajuda”, lamenta o Todo-Poderoso, fazendo mea-culpa.

 

Concentrado em sua posição de lótus, outro personagem inusitado se desmancha em desdém: “Não sou apóstolo de ninguém, não sei nem o meu caminho!”, responde incomodado.

 

Travada entre os atores João Antônio e Andrade Júnior, morto em 2019, a conversa non sense dá a tônica do filme, “Acaso”, único representante do Distrito Federal na competição principal do 54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (FBCB). Estreia na direção de longas do artista plástico e fotógrafo, Luis Jungmann Girafa, o projeto é uma aventura coletiva que transita entre o improviso e o absurdo.

 

O filme pode ser visto gratuitamente na plataforma InnSaei.TV.

 

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Programação – 54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

 

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A edição 54 – 2021

 

“É um projeto criativo, que resultou num poema audiovisual. Não é sobre a W3, não é sobre cada um dos personagens, é sobre o ser humano que caminha para a morte, o ser humano em todos os sentidos”, explica o ator e também professor, João Antônio, mais de 50 filmes nas costas e vasta experiência na afirmação do teatro no DF.

 

“Depois desses anos todos, passei por experiência inteiramente nova, foi uma loucura que deu certo”, destaca o experiente artista, que chama Jungmann de amigo, mentor e provocador.

 

Festival de Brasília - José Roberto Bassul

Girafa

Mineiro de Juiz de Fora, desde a inauguração de Brasília morando na cidade, Girafa deixa claro que, apesar do estilo criativo ousado, seu filme não tem nada de experimental. Brinca dizendo que subverte a forma de fazer cinema deixando um bando de profissionais fazendo um filme amador, mas “amador no sentido de amar”.

 

Os 20 atores que circulam em cena tiveram total liberdade para improvar em cima de textos que eles mesmos escreveram ou adaptaram, dando vida às personas inusitadas que transitam por essa rua que, por “acaso”, é na W3, Sul, mas que poderia ser uma rua qualquer, de qualquer lugar, como gosta de destacar o diretor.

 

“Não dou a importância que a W3 tem dentro do filme”, observa Girafa, diretor de dois curtas-metragens e com mais de 30 exposições no currículo. “É um projeto que foi possível diante das possibilidades. Nem eu sabia direito no que ia dar. À medida que a gente foi filmando, as coisas foram acontecendo, o roteiro realmente se fez quando juntou tudo na ilha de edição, foi quando conseguimos construir uma história”, revela o artista.

 

DELÍRIOS LÚCIDOS

 

De fato, a montagem de Juana Salama é a grande vedete de “Acaso”, que consegue sintetizar, numa cadência narrativa leve e hipnotizante, essa profusão de ideias, obsessões e loucuras que permeia o cotidiano dos personagens do filme e, talvez, de todos nós. Enfim, são reflexões incômodas e provocações pertinentes ditas por figuras conhecidas de vários segmentos das artes de Brasília, como o diretor de teatro Hugo Rodas, o elétrico músico Renato Matos, a cantora Gaivota Naves, a escritora Maria Lúcia Verdi, além dos atores Carmem Moretzsohn, Celso Araújo, Bidô Galvão, entre outros.

 

“É um projeto muito bonito que nos encaminha para a poesia de uma cidade qualquer, bem diferente de tudo que tinha feito no cinema”, assimila a atriz Bidô Galvão. “São camadas e mais camadas da narrativa de diversos personagens transitando por essa cidade misteriosa, sem esse caráter de realidade que nos leva para dimensões diversas, gerando uma complexidade interessante”, avalia.

 

 

 

O diálogo entre essa rua enigmática sem o céu deslumbrante de Brasília ou horizonte é notado o tempo todo na tela. Um clima de histeria necessária, talvez, e desabafo constante que ganha impulso especial pela trilha tocante assinada pela dupla, André Luiz Oliveira (cineasta) e Zepedro Gollo, e que pulsa no ritmo frenético dos carros, pessoas anônimas, uma infinidade de cores e traços da arte urbana que explodem em paredes e vários muros do local. À sombra de disparates sensatos e delírios lúcidos, cada um deixa seu testamento de vida ou morte. Um pouco de tudo e nada que existe dentro de todos nós.

 

“Não quero uma vida vegetativa para mim. Eu quero a eutanásia. É a morte das pessoas inteligentes”, sapeca uma senhora em dado momento da narrativa. “A poesia é a única salvação”, reflete com sabedoria lírica, outra dessas figuras que caminha sem rumo pela W3.

 

Um dos símbolos e outrora centro comercial modelo de Brasília, a W3 Sul pode não ser personagem explícito em “Acaso”. Mas sua existência não é ignorada, sobretudo para aqueles que vivem na cidade ou já passaram por ela algum dia. Caso do artista, Ney Matogrosso, que se lembrou de um episódio curioso, inusitado até que aconteceu com ele na via e relatado na biografia escrita por Julio Maria, ou de figuras célebres desse nosso cerrado, como o artista plástico, diretor de teatro jornalista e ambientalista, Ary-Para-raios, mestre da rebeldia e ousadia, falecido em 2011 e a quem, junto com outros nomes, teve o filme dedicado.

 

“Brasília é uma cova. Não para enterrar defunto. Mas para plantar sementes. Vou continuar fazendo palhaçadas. No mais, quero ver o mundo de cabeça para baixo”, afirmou, certa vez, numa entrevista ao Correio Braziliense.

 

De certa forma, é isso que o filme “Acaso”, faz… Deixa o espectador de cabeça para baixo!

 

Assessoria de Comunicação da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Ascom/Secec)

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